O prior, o mendigo, o abade e o pneu careca
Estou solidária com o Padre Feytor Pinto. Nunca pensei que tal me acontecesse, pois sobre a Igreja Católica - como sobre as outras Igrejas - costumo limitar-me a um sincero voto de que vão fazer muitos prosélitos para o quinto dos infernos. No entanto, as acusações de falta de caridade cristã ao pároco do Campo Grande são imerecidas. O homem pediu, do púlpito, à plateia para não dar esmola aos omnipresentes mendigos, antes os encaminhar para a obra de assistência social lá do sítio... e estava pejado de razão. A esmola é um lavar de mãos fariseu. E a caridadezinha uma abominação do Senhor.
Depois, salta da rua um energúmeno irritado por ver em perigo o seu rendimento garantido – os lugares de mendigo na Igreja do Campo Grande são muito lucrativos e quase tão disputados como os da Administração da Caixa Geral de Depósitos – e vai de agredir o prior. Sim, eu sei que o mendigo deve ter direitos adquiridos e que aquele segundo degrau bem posicionado, onde chovem euros à hora de ponta de ver a deus, lhe custa a segurar. É natural que só o consiga usando diariamente os punhos, como garante da sua visibilidade para as surtidas de esplendor misericordioso dos pios. Mas e por isso o pároco devia estender a outra face? E recusar-se a apresentar queixa contra o agressor, coitadinho, que é pedinte de profissão? Hmm… tal sugestão só pode partir das mesmas almas caridosas que assinaram cartas anónimas a pedir a cabeça do Pinto por este ter achado admissível o uso de preservativo quando um dos membros do casal é seropositivo. O que, vendo bem as coisas, é um crime de lesa-santidade. Pior do que apresentar queixa contra um mendigo. Ou do que não lhe pagar os euros da protecção divina.
Também estou solidária com Mário Soares. Nunca pensei que tal me acontecesse, pois nesta altura do campeonato reservava a minha solidariedade para com todos os bolos-reis mártires de Portugal. Mas... qual a lógica de uma civilização que prolonga como nunca a expectativa de vida das pessoas e lhes passa atestados de incapacidade por velhice? Revolta a presunção de Alzheimer anunciado que salta, qual palhaço da caixa, quando um octogenário se perfila no horizonte de mentecaptos que acham que idade é doença. Mário Soares tem, como qualquer cidadão – desde que maior de trinta e cinco anos – direito a candidatar-se a PR… e a repetir a dose em 2010, com viçosas oitenta e seis primaveras. Se isso lhe adiantará algo no rodapé da História ou se será o Presidente ideal para o momento, não vem ao caso.
Finalmente, estou solidária com os pneus carecas dos camiões do lixo da Câmara Municipal de Lisboa. Nunca pensei que tal me acontecesse, pois sou, em geral, pouco sensível às adversidades capilares alheias. Mas, segundo o pai do bebé Dinis Maria, foi devido à tonsura dos ditos que lhe interditaram a nobre iniciativa de se pendurar nos veículos para acompanhar as noites loucas dos servidores municipais. Foi enternecedora a preocupação de Carrilho com a segurança dos homens do lixo. Aliás, percebia-se no esganiçado da voz a tortura que os pneus carecas lhe causavam. Por um lado, foi pena, visto que se perdeu uma vocação: não há dúvida que Carrilho seria muito mais bem aproveitado nos dejectos do que em qualquer outro emprego camarário. Mas os pneus foram heróicos… suspeito até que se depilaram por abnegação. O que é contagioso: se isso servir para afastar o sujeito da edilidade, podem chamar-me Sinéad.